https://www.facebook.com/denia.dutra

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

A passagem

A claridade adentrava as frestas da persiana azul, quando me despertei nua sob lençóis brancos. Corri minhas mãos insanas sobre meu corpo que gritava por prazer.
Entrelacei minhas pernas ao seu corpo e senti suas mãos sonâmbulas a buscar meus seios. Beijos suaves sobre minhas costas e fizemos amor ao amanhecer de uma sexta-feira morna.
O despertador a estourar meus tímpanos e a triste realidade que não era sábado, a responsabilidade me chamava. Uma ducha rápida e energizante. Era tudo que eu precisava. O hidratante com cheiro de flores da primavera e as mãos deslizavam num ritmo diferente sobre minha pele. O espelho projetava a imagem de uma linda mulher, assim era eu naquele momento. Mas não ousei pensar. A lingerie branca talvez fosse o prenúncio de eu estava diferente naquela manhã. Nada de preto, a não ser o cabelo caído em mechas sobre os ombros nus.
O café preto e senti a ponta da faca penetrar a palma da mão enquanto cortava um pedaço de pão. Uma só gota de sangue, mas doeu como se tivesse retalhado todo corpo. Um corte quase invisível a não ser por um risco vermelho.
Até o creme dental tinha um gosto diferente e fiquei fazendo bolhas com sabor de menta. E mais uma vez assustei ao me ver no espelho, havia uma luz brilhante nos meus olhos. Mas não me permiti pensar.
A maquiagem leve, a sombra lilás e rosa, uma combinação harmoniosa, longe dos tons escuros que sempre usei. A janela aberta e senti o vento de verão soprar de leve. Um arrepio nos braços e pescoço, eu estava atrasada.
Por fim, coloquei a sandália dourada para combinar com o bordado do vestido branco de algodão.
Como bailarina fiquei rodopiando frente ao espelho. A casa estava muito silenciosa naquela manhã. Eu estava mesmo atrasada.
No som do carro, ouvi minha música. Fazia tanto tempo! O dia parecia perfeito, olhei mais uma vez para as montanhas que recortavam o céu de um azul tão intenso e não consegui enxergar. A luz nos meus olhos.
No escritório um susto ao ler um recado fúnebre e sem graça. Alguém morrera, porque não me avisaram? Parentes e amigos a velarem a passagem de uma alma. Quantas flores com cheiro de hidratante, a minha música. Ninguém chorava, ninguém conversava. E fui deslizando entre as pessoas até chegar frente à urna.
Realmente eu estava linda naquele vestido branco com bordado dourado. Eu só queria entender o que eu fazia dentro da urna toda revestida por filetes dourados. Eu estava viva. Mais uma brincadeira sem graça, mas todos me eram indiferentes.
Sentei de frente para minha imagem imóvel, olhando para cada rosto. Eu não conseguia lembrar de nada a não ser que despertei naquela manhã com uma claridade forte, entrando pelas frestas da persiana azul.
Num repente todos se foram e eu permaneci sentada olhando para a luz prata que entrava pela porta, não senti vontade de me aproximar. Não desejei pensar.
E então, ele surgiu no meio da luz e veio até mim. Estava lindo num terno azul escuro. Lembrei-me que fizemos amor naquela manhã. Ao som da nossa música, dançamos como nos velhos tempos e todo ambiente ficou cada vez mais claro, a luz cada vez mais forte e senti meu corpo flutuar.